A morte do jornalista, programador e curador, Rui Trindade, a 31 de Julho, apanhou de surpresa a comunidade criativa de Maputo, incluindo o próprio que que encontrava-se empenhado para mais uma edição do festival Maputo Fast Forward e o lançamento de um novo projecto editorial que colocará Maputo no circuito mundial das artes e ideias.
Rui Trindade idealizou o festival Maputo Fast Forward (MFF) em 2016, quando não se podia imaginar conceber um projecto igual numa cidade em constante estado de monotonia criativa e de repetições. Começou por ser um evento para comemorar o Dia Mundial da Criatividade, prova que sempre soube por que caminhos levar toda a carga que carregava de fazer coisas que impulsionassem um país com potencial em termos de produção artística e que tem muito por onde aprender.
Seu curriculum que se dispensava pela forma convincente com que se apresentava às pessoas próximas que de imediato embalavam-se nas suas propostas, inclui, a licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.
Trabalhou como jornalista no Expresso e para diversos outros meios de comunicação. Foi autor dos programas de divulgação científica e ambiental Aventuras do Conhecimento e Ambientes (RTP2) e Atmosferas (SIC Radical), sobre arte e tecnologia. Concebeu e programou o ciclo de exposições Cyber: A Criação na Era Digital para o Centro Cultural de Belém (1997-98-99). Foi comissário na exposição Engenho e Obra — A Engenharia em Portugal no século XX (2003) e Cem anos da CUF no Barreiro (2008). Programou para a Culturgest as conferências internacionais Em Busca da Felicidade (2007), As Regras da Atracção (2008) e A Moeda Viva — Dinheiro & Afectos (2009). Foi co-fundador do CADA (Centro de Artes Digitais).
Há cerca de dez anos escolheu Maputo para ancorar as suas ideias e energias. A mudança era parte de um plano maior, encontrar um lugar onde fosse capaz de caminhar livremente pelo o mundo que só cabia na sua cabeça, um mundo que fosse possível aplicar ideias novas sem ter de li dar com velhos problemas, a recusa da mudança ou o medo de arriscar.
Sara Carvalho Martins Rebello da Silva, filha única do Rui, viveu de perto esses momentos de luta.
“Há mais de 20 anos ele idealizou um projecto grande que tinha a ver com televisão e internet, nessa altura ainda não havia nada de especial. Conseguiu investidores, mas de repente começou a haver crise e retiraram o investimento. Esse projecto era muito ambicioso, eu acho que era antes do seu tempo. Nos anos a seguir era uma plataforma gigante com todos os assuntos possíveis e imaginários, moda, design, arquitectura, ciência, tecnologia, com vídeos etc. mas nessa altura a internet ainda estava a começar. E ele já sabia o potencial que tinha, já sabia onde ia chegar. Os investidores tiveram medo. Se calhar ele tinha de ter esperado mais uns cinco anos para uma ideia dessas. Mas ele já estava a frente do seu tempo.”
Sair da sua zona de conforto, onde as suas ideias tinham um certo bloqueio foi o caminho encontrado. Inicialmente sem grandes planos, seria provavelmente mais uma das daquelas viagens que o acompanharam durante grande parte da sua vida, uma das quais quando foi para os Estados Unidos de América onde experimentou o mundo da curadoria, das exposições, do circuito artístico global. Mas na capital moçambicana assentou as suas novas raízes.
“Ele sempre estava a procura de coisas novas, de pessoas que o inspirassem, coisas diferentes. Ele sempre sentia as vezes que se calhar Portugal era demasiado pequeno, que talvez não estava preparado para receber as ideias dele.”, afirma a filha.
Em Maputo, instalado, cruzou os caminhos com Raquel Nobre que fundara uma empresa de comunicação e precisou dos préstimos de Rui, como jornalista. Aliás, antes de tudo o que se sabe da sua vida actual, Rui foi durante vários anos um quadro do semanário português Expresso, portanto, as suas referências eram as melhores.
“O Rui foi contratado para Qideia, mas acho que ao fim de uma semana percebi que ele não ia ter nenhum contributo para a empresa. Eu acho que eu e o Rui encontramo-nos para criar este projecto. Foi esse propósito de nos termos conhecido, sem sabermos na altura. Eu e o Rui trabalhamos juntos seis anos e ele fez coisas extraordinários. O que posso dizer que é que foi orgânico, foi natural e aconteceu.”
Raquel Nobre é fundadora da Qideia, importante para a criação do Maputo Fast Forward (MFF). Em 2016, a pretexto de celebrar o dia mundial da criatividade, arrancou o que nos anos a seguir veio a ser o MFF no modelo que se conhece. Um festival de criatividade, inovação entre outras coisas.
A preocupação do Rui estava na promoção do conhecimento em geral, da literatura, às artes visuais, do audiovisual, da arquitetura, da tecnologia e de ideias diferentes, experimentais para muitos, mas para si, na sua forma de olhar para as coisas, já estava concebido e certo que é a tendência.
Raquel Nobre descreve Rui, como um ser incapaz de ficar sossegado, mesmo quando parecia estar calmo e introspectivo, por mais que parecesse que o precipício do seu mundo de imaginações estava à beira, ele avançava para construir outros caminhos. Sempre a procura de conhecer novas coisas, de conhecer novas pessoas ou, ainda, de extrair o melhor delas.
Aliás, a Sara, recorda-se de o ver dias e horas dedicando-se, religiosamente a leitura, a pesquisa, o que lhe conferia uma certa facilidade de socialização. Facilmente criava conexões e parcerias entre criativos moçambicanos e do mundo, através do MFF, mesmo diante de orçamentos magros, quase impossíveis.
“Cada vez que ele conhecia alguém, vinha excitadíssimo para o escritório. Todos os dias ele conhecia uma pessoa fantástica. Ele apaixonava-se todos os dias. E cada pessoa que ele conhecia, dentro das áreas artísticas, estava sempre a procura de como encaixa-la com as coisas que nós estávamos a fazer. E todos os anos tínhamos um plano de dez e acabávamos com mil. Mas sempre dava certo”, recorda Raquel.
E no meio da sua inquieta mentalidade, o MFF evoluiu para um festival que, como ele próprio afirmava, apesar de não estar certo disso, que ligava Maputo ao mundo. Veio a pandemia e Rui soube reinventar-se e colocar o evento num patamar ainda mais apreciável para quem visse de fora. Não é por acaso que vários foram os nomes de prestígio que aceitaram os seus convites para integrar a programação.
A morte surpreendeu-o num cenário em que o MFF ia dar um grande salto qualitativo, mas a níveis ainda mais expressivos no projecto editorial que iniciou com o RADAR, a newsletter semanal feito pessoalmente pelo Rui e distribuído semanalmente. Até o último momento, confirma Sara, o programador e curador não deixou de pensar no MFF e no que se preparava para acontecer, procurando articular sempre com os restantes colaboradores do festival.
A directora do 16Neto, Elodie Finel que coordenava com o Rui a programação do MFF 2022 e que vem estando na responsabilidade de gerir o evento há três anos, afirma que a ausência do curador mudará as perspectivas sobre a cultura e os padrões de excelência que se esperava dela em Moçambique.
“O Rui tinha uma hipersensibilidade. Dávamo-nos tão bem e ele dizia-me muitas vezes como estava contente por estar connosco. Ele confiou ao 16Neto o seu “bebé”, como ele mesmo dizia. Rui era imensamente cativante, surpreendente, por vezes irritante, sempre brilhante, e engraçado. Tenho saudades dele todos os dias. Acho que ainda não consigo acreditar que ele se foi.”
E num contexto em que várias acções estavam avançadas para a edição de 2022 do MFF, a intenção da organização é prestigiar o mentor da iniciativa, a partir do que ele já havia organizado em termos de curadoria. Agora, a missão tornou-se de preservar o melhor do que Rui Trindade criou e estabeleceu em Maputo.