O escritor e designer Mélio Tinga esteve em residência nas Maurícias através de uma bolsa de mobilidade do COI – Comissão do Oceano Índico. Objectivo: conhecer e interagir com o mercado literário daquele país do Índico e procurar estabelecer pontes e uma “nova” rota para a leitura no mundo da literatura moçambicana. De resto, aquele país foi um ponto de referência no tráfico de escravos partindo de Moçambique para o mundo, tendo ali alguns até se fixado.

Mélio Tinga, a residência nas Maurícias e uma constatação: “Moçambique é uma ilha” 

O escritor e designer Mélio Tinga esteve em residência nas Maurícias através de uma bolsa de mobilidade do COI – Comissão do Oceano Índico. Objectivo: conhecer e interagir com o mercado literário daquele país do Índico e procurar estabelecer pontes e uma “nova” rota para a leitura no mundo da literatura moçambicana. De resto, aquele país foi um ponto de referência no tráfico de escravos partindo de Moçambique para o mundo, tendo ali alguns até se fixado. O escritor encontrou essas marcas e outras constatações que são mote para esta entrevista que tem tudo a ver com uma nova e diferente abordagem ao negócio do livro e a tal sustentabilidade de que tanto se fala para o mercado do livro. “Estamos completamente insolados na região, os nossos livros, em língua portuguesa, na região sul do continente não temos para quem vender”, afirma o Mélio Tinga, que tem, agora, uma percepção de que traduzir os livros é o caminho para que se saia da depressão dos 200 exemplares que grande parte dos autores e editoras moçambicanos tem estado condenados. 

Mélio Tinga tem se destacado entre autores da nova geração em Moçambique. O seu romance de estreia, “Marizza”, foi Prémio Imprensa Nacional/Eugénio Lisboa (2020). Em 2023, foi o escritor vencedor da Residência Literária Maputo Lisboa.

Esta viagem para Maurícias é um pouco com sentido de explorar o desconhecido ou o abrir de uma nova rota?

Acho que é no sentido de explorar o desconhecido, abrindo uma nova rota, para descobrir para onde ela nos pode levar. Como quem apenas segue um som, e sabe que trata-se do canto do pássaro, independentemente de onde seja a sua origem.

É uma nova rota, a pensar que temos tendência “natural” ao Atlântico. Tu mesmo foste a pouco (Maio, 2023) para Portugal em residência. O índico é afinal um território de várias histórias em comum?

Este lugar é completamente diferente do Portugal que eu conheci. O Índico, por isto e pelas outras coisas que conheço é um lugar de mil e uma histórias em comum. Descobri, por exemplo, que Maurícias tem uma forte relação histórica com Moçambique relacionada com o processo de escravatura. Maurícias era uma espécie de ponto de paragem, e uma boa parte destes vinham de Moçambique, daí, por exemplo, haver por cá uma zona com o nome Macondé, que inclui uma rocha, mar. Acredita-se que a área recebeu o nome de escravos fugitivos da tribo Maconde de Moçambique. Hoje mesmo foi visitar um museu que abriu recentemente, o Museu Intercontinental de Escravos, onde tive a oportunidade de ver diferentes imagens de bustos reais com informações da tribo, pais de origem e idade – boa parte destes eram de Moçambique. Existe uma ligação muito sólida entre nós, e é impossível fugir diante desses factos. O que temos a fazer a consolidar, solidificar essas conexões históricas e culturais.

Culturalmente, talvez seja mais fácil chegar a França, Índia, China, Austrália, entre outros países, estando em Maurícias. Quando se fala em um país multicultural e multiétnico, este de facto é, e é mais denso por ser tudo isso numa Ilha de cerca de dois mil quilómetros, não tem como diluir. Estes são alguns exemplos de que este é um caso, no Índico, de várias histórias e que se cruzam.

Fala em compreender o funcionamento do mercado literário nas Maurícias. Mercado e Literatura duas expressões ainda complexas em Moçambique. Talvez te tenham feito esta questão: como é o mercado literário Moçambicano?

É difícil. Quem trabalha com o livro sabe. Difícil! Despende-se muita energia, não existe um mercado realmente que flui, nem existe tal mercado, engasga-se constantemente, apesar de gente talentosa e corajosa que temos. As livrarias, cada vez mais fecham, não há incentivo sério para edição, produção e distribuição do livro. Uma pequena editora, por mais força de vontade que tenha, nunca teria condições de produzir e distribuir o livro pelo país. As poucas gráficas que imprimem livros na capital do país, ou tem uma baixíssima qualidade ou então tem um altíssimo preço. Ou seja, o editor deve escolher entre vender barato um livro que se vai destruir na porta da livraria, ou vender muito caro, um bom livro, que pode levar anos para ser retirado da prateleira por um leitor. Se quisermos pensar mercado, temos de olhar para todas dimensões, autores, editores, revisores, gráficas, distribuidores, críticos, meios de comunicação e divulgação, e um elemento que muitas vezes nos esquecemos dele, o Estado. Hipoteticamente, se este comprar apenas duas cópias para cada província de cada livro publicado por uma pequena editora, estaria a fazer uma coisa concreta. E se comprar dez cópias para cada província estaria a salvar muitos sonhos.

Podemos perceber que o “mercado” literário moçambicano também funciona um pouco com a tua influência: escritor, designer (de livros), empreendedor na área literária, promotor de eventos literários, enfim… Parece que há muito por se fazer em Moçambique. Por onde começamos e para onde vamos?

Acho que o ideal é começarmos por onde estamos, com as coisas que estamos a fazer. Se quisermos procurar uma outra forma de começar, acabaremos um pouco frustrados. Neste momento me parece que o importante é ser constante, permanente, continuar a sacha, com as ferramentas e armas que tivermos. Não é fácil trabalhar com o livro em moçambique, todos nós temos noção. Mas também não é fácil aqui em Maurícias. Mas tenho uma leve impressão de que eles têm mais apoio de organizações não-governamentais, pelo menos isso parece evidente. Tive vários encontros com alguns dos principais actores do mercado de livro, alguns se espantaram quando falei de 200 e 500 exemplares, porque nós temos um país grande, dezenas de vezes maior que este (Maurícias), temos muita gente, mesmo se considerarmos excluir a população que não sabe ler, continuamos a ser um universo enorme. Aqui, 500, 1000 a 5000 exemplares, é o que normalmente fazem. Quem faz 5000 cópias em Moçambique, ficção? Aí, pode ser que entre um factor importantíssimo: língua. Maurícias é fisicamente, uma Ilha, mas Moçambique, linguisticamente é uma ilha. Estamos completamente insolados na região, os nossos livros, em língua portuguesa, na região sul do continente não temos para quem vender. Temos Angola, mas que relações permanentes no sector do livro temos criado com Angola? De resto, todos países falam inglês. No caso de Maurícias, apesar de o mercado ser pequeno, tem fortes relações com os países do Oceano Índico, como Seicheles, Madagáscar, Ilha Reunião e Comores, o que amplia muito o raio. Para além disso, tenho a impressão de que Comissão do Oceano Índico (COI), uma organização intergovernamental que reúne os países que mencionei, tem feito alguma coisa, existem muitos livros por cá, publicados com o apoio desta organização, principalmente para crianças. Menciono esta organização porque penso que uma como a CPLP no nosso caso tem o livro como uma forte arma de promoção da língua, conexão e intercâmbio cultural entre os povos. Em Moçambique não conheço nenhuma iniciativa permanente no sector do livro que se tenha beneficiado de apoios desta natureza.

Esta entrevista tem de ser sobre as Maurícias. Voltemos (ou vamos). Sei que tem sempre um caderno de anotações. O que estava escrito sobre a lista de afazeres, lugares, pessoas e instituições por conhecer?

Este programa de mobilidade exigia que os candidatos, entre individuais e instituições submetessem um projecto sobre o que lhes interessava. Neste momento, mais do apenas escrever e publicar, me parece importante que comecemos a olhar para o que acontece pelo continente e pelo mundo, o que podemos aprender com os outros e o que podemos dar. O que podemos levar para nós e o que levar para fora. Precisamos nos conectar com os outros, apesar da barreira linguística. Portanto, esse projecto já expressava esse interesse, essa vontade. O meu bloco de notas funcionou antes de finalizar esse projecto, mas também logo depois da selecção, na identificação de instituições, pessoas e tipo de interesses comuns. O que incluía escritores, editores, gráficas, jornalistas culturais, professores de literatura, directores de festivais. 

E como está a esta altura essa lista. Agenda cumprida ou vão se despoletando novos e outros destinos e pessoas?

Sinto que o que esteva traçado está feito. Como dizem os políticos: Saio com a sensação de missão cumprida. Neste momento o importante é construir caminhos para que surjam resultados destes contactos feitos. Porque como disse, historicamente temos conexões, neste momento é preciso atravessar a barreira da língua. Obviamente que neste tipo de estadias, quando os últimos dias se aproximam surgem mais pessoas interessantes, recebemos mais sugestões, mas temos tempo limitado, não podemos fazer tudo.

Como efectivamente será possível tornar a sua experiência de intercâmbio em matéria tangível?

Objectivamente, acho que temos de começar pela tradução. Sem isso, seria a mesma música dos sapos no mar. Temos de abrir o caminho traduzindo livros das novas vozes de Moçambique, mas também precisamos de conhecer algumas das mais interessantes das Maurícias. Eles não sabem nada do que temos, nem sobre os mais renomados escritores, nós também não. Não sabem nada da literatura em língua portuguesa. Em uma das conversas, quando mencionei que Mia Couto, escritor moçambicano tinha vencido uma das edições do Prémio Internacional Neustadt de Literatura, ficaram espantados. Deste lado há pessoas de facto interessadas, temos, por exemplo estado a pensar sobre possibilidades de co-edição entre os dois países, tenho esperança que teremos resultados.

Estas bolsas de mobilidade são um caminho interessante de se aceder a outros territórios, no sentido de novas paisagens enquanto escritor e possíveis oportunidades?

Acho extremamente interessante esse “novas paisagens”. E posso justamente me perder a responder por causa dessa expressão. Mas sim, estas bolsas de mobilidade são valiosas porque nos tiram na nossa caixa protectora e nos conectam com outras realidades, o que mais do que qualquer outra coisa, como escritor é uma grande riqueza, mas também interessante por ajudarem a construir outros caminhos.

E, finalmente, a língua. Afinal o Mélio é escritor e quererá ser lido e compreendido nesse outro território?

Na literatura, acho que temos de nos traduzir para nos compreendermos, mas também para ampliarmos a nossa rede de leitores. Como escritor, de todos encontros que tive, apesar do interesse com se tinha sobre o meu trabalho, não se tinha como ler, razão? Língua. Grande parte da literatura mauriciana está em francês, alguma em inglês e outra no crioulo mauriciano. O francês é falado em cerca de 21 países africanos, isso pode ser alguma coisa que tenhamos de pensar sobre que caminhos pretendemos trilhar.

Das reflexões e encontros que tem tido quais são as grandes questões por responder e resolver?

Porquê temos um país tão grande e produzimos tão pouco? (produzir no sentido quantitativo). Que potencial realmente pode existir nas nossas línguas locais para pequenas histórias? Que iniciativas podemos concretizar para ajudar a divulgar a nossa literatura? (achamos que nos divulgamos o suficiente, a realidade é outra).

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