A arte pode mudar o mundo?

Numa altura em que o mundo vai mal aqui e ali, em que as guerras grassam sem que se saiba como as travar e em que o racismo ressurge violentamente, podemos felizmente contar ainda com os artistas e a sua criatividade múltipla para nos devolverem um pouco de esperança e um espírito de abertura aos outros.


Empenhado e cativante, o artista urbano contemporâneo francês JR, grafiteiro, fotógrafo, coreógrafo e cineasta, é certamente um deles. Graças às suas obras efémeras, monumentais e espectaculares feitas de colagens de papel fotográfico, reconhecíveis em todo o lado, ele ainda não acabou de nos surpreender! Viajando pelo mundo quando não está a dividir o seu tempo entre os seus dois estúdios em Paris e Nova Iorque, rodeado pela sua equipa de dez pessoas, faz arte que fala das preocupações políticas, económicas, ecológicas e espirituais do nosso tempo.


Usando constantemente o seu chapéu preto e escondendo os olhos atrás de óculos opacos, incógnito nos seus primeiros tempos, tornou-se desde então uma das figuras mais ambiciosas do mundo da arte. Nascido em 1983 na região parisiense, JR (o seu pseudónimo é Jean René) deseja permanecer anónimo e não revelar a sua verdadeira identidade. E há quase vinte e cinco anos que espalha a sua arte livremente em espaços públicos de todo o mundo, afirmando que quer levar a arte para a rua para se dirigir aos transeuntes. “Tenho a maior galeria de arte com paredes em todo o mundo e quero usar a arte como uma ponte para que as pessoas possam falar umas com as outras e criar laços”.


Vejamos algumas das suas obras mais emblemáticas, criadas nos quatro cantos do mundo.


Entre 2001 e 2004, quando JR começou a sua carreira de adolescente com graffitis nas fachadas de Paris, deixou a sua marca em telhados e comboios subterrâneos. Encontrou então uma máquina fotográfica e começou a documentar o seu processo criativo, colando fotocópias dessas fotografias em paredes aqui e ali. Criou a sua primeira exposição, Expo 2 Rueutilizando as ruas da cidade como uma galeria aberta a todos. Este modo de expressão tornou-se a sua imagem de marca e passou a desenvolvê-lo sem limites de tamanho e numa multiplicidade de locais em todo o mundo.


Em 2005, a convite do realizador Ladj Ly, fundador do coletivo Kourtrajmé, realizou Retrato de uma geração, retratos de jovens dos subúrbios expostos em grande formato nas paredes do bairro Bosquets em Montfermeil, um subúrbio violento perto de Paris onde reina um clima de revolta. Regressou dez anos mais tarde para criar e filmar um bailado com quarenta e dois bailarinos do New York City Ballet, como forma de combater a precariedade e criar beleza onde menos se espera.


Em 2007, com Face 2 Face, produziu “a maior exposição fotográfica ilegal alguma vez criada”, exibindo retratos gigantescos de israelitas e palestinianos, frente a frente, em oito cidades palestinianas e israelitas e de ambos os lados do muro de segurança que separa estes dois povos há mais de vinte anos.


Entre 2008 e 2010, do Brasil à Serra Leoa, da Libéria ao Quénia, da Índia ao Camboja, JR escolheu homenagear as mulheres que desempenham um papel essencial nas nossas sociedades, mas que continuam a ser vítimas da guerra, do crime, da violação e do fanatismo político e religioso, resultando num magnífico documentário intitulado Women Are Heroes, que lhe valeu o Prémio TED em 2011.


Em 2010, JR iniciou o projeto Unframed, utilizando não as suas próprias imagens mas as de alguns dos grandes nomes da história da fotografia, como Robert Capa, Man Ray, Gilles Caron, Lehnert e Landrock e Helen Levitt, que admira e que coloca nas fachadas de edifícios seleccionados.


Desde 2011, com INSIDE OUT, instalou-se no sopé da biblioteca François Mitterrand, em Paris, convidando estranhos a virem tirar os seus retratos numa cabina fotográfica contida numa carrinha, antes de os colar no chão. Desde então, tem viajado de cidade em cidade por todo o mundo, criando mais de 500.000 retratos efémeros e mais de 2.500 acções temporárias em mais de 150 países.


Em 2014, a cidade de Nova Iorque convidou-o a explorar os arquivos de Ellis Island e criou cerca de vinte colagens nestes edifícios repletos de história, onde doze milhões de imigrantes chegaram aos Estados Unidos entre 1892 e 1954, nesta ilha simbólica situada ao lado da Estátua da Liberdade. O resultado é uma bela curta-metragem intitulada ELLIS, com a presença inspiradora de Robert De Niro.


Em 2016, a convite do Museu do Louvre, JR abordou a pirâmide, criando um trompe-l’œil gigante a preto e branco, criando um efeito visual surpreendente, como se o famoso edifício do arquiteto chinês Ieoh Ming Pei estivesse a desaparecer. Em 2019, para celebrar o 30.º aniversário da pirâmide de vidro mais famosa do mundo, está a fazê-lo novamente com a ajuda de quatrocentos voluntários. 


Em 2017, co-realizou o filme Visages, Villages com a realizadora francesa Agnès Varda.


Finalmente, em 2019, JR obteve uma autorização excecional para realizar um projeto numa das prisões de alta segurança mais violentas da Califórnia, chamada Tehachapi. Aí conheceu vinte e oito homens encarcerados e convidou-os a participar num projeto artístico em que os fotografou e lhes deu a oportunidade de contarem as suas histórias e o seu processo de reabilitação. Mostra como a arte pode ser uma fonte de esperança, revelando a capacidade de mudança dos indivíduos e oferecendo um olhar pungente sobre a humanidade atrás das grades, como se pode ver na sua última longa-metragem, que acaba de ser lançada nos cinemas. 


Em suma, este retratista humanista sem fronteiras nem barreiras conta já com uma vasta e prolífica carreira. E a sua abordagem é simples, óbvia e eficaz: expor as suas fotografias para todos verem. Este “fotoengrafista” e “artivista urbano”, como se auto-intitula, está lá para apoiar causas anti-globalização e pacifistas, combinando arte e ação. Tantos rostos sorridentes, carrancudos ou enrugados e olhos fixos que nos perscrutam, questionam e desafiam. Se JR esconde os seus, é para mostrar melhor os dos outros. Seja qual for o sexo, a idade, a cor da pele, a origem ou a religião, ele transforma o mundo num museu ao ar livre.

Artigo por

Júlio Magalo

Julho 1, 2024

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