María de Jesus — A noite da Machava Socimol KM15

Às vezes, quando o vento sopra do lado da Machava Socimol Km15, a poeira levanta devagar, como se o bairro respirasse. 

Machava à noite tem um cheiro que só quem vive por ali compreende os sentidos: mistura de carvão, cerveja quente e chuva prometida. O dia acaba, os chapas param, e o silêncio vem com os passos das meninas que começam a aparecer nas esquinas. É nesse momento que María de Jesus sai. 

O corpo já aprendeu o caminho: da barraca da Dona Amélia até a esquina do Km15, onde a luz do candeeiro falha de vez em quando, ali, entre sombras, ela espera. 

Diz que gosta daquele ponto porque o Bar ao lado toca sempre alguma marrabenta antiga, dessas que lembram a infância e a tristeza ao mesmo tempo. 

Quando a noite cresce, o bairro muda de voz. Os carros falam alto, as motas gritam, os homens riem bêbados e o chão de areia parece ouvir tudo sem reclamar. 

María caminha devagar, olhando os rostos que passam. Alguns são conhecidos, motoristas, jovens, casados fingindo ser livres, até agentes da polícia que preferem negociar o silêncio. Outros rostos vêm de fora, com pressa, sem nome, sem olhar. 

Ela aprendeu a ler os olhos. Sabe quem traz dinheiro, quem traz perigo, e quem traz apenas a solidão. Mas às vezes aparece alguém diferente. Como o rapaz de um armazém que, certa noite, lhe comprou uma água. Não quis nada, só perguntou se ela estava cansada. Falaram de sonhos, de mecânica, de vidas paradas no semáforo da cidade. Ele foi embora e nunca mais voltou. Mas ficou nela, como uma pequena lembrança de humanidade. 

María trilhou esse caminho por falta de outro. Perdeu o emprego de doméstica quando a patroa foi para África do Sul. Tentou vender roupa usada, aquela da calamidade, mas o lucro morria na comida e nos chapas. Certa vez, ou errada talvez, uma suposta amiga trouxe-a para a noite do Km15, nas esquinas das “mulheres da vida” dizendo: “É só por umas noites, mana.” Mas as noites não tem calendário. E algumas se transformam em anos. 

O bairro fala dela, sim. As vizinhas cochicham quando ela passa, dizem que é a “mulher perdida”. Nenhuma pergunta quanto custa o arroz, nem quanto pesa o silêncio de não ter escolha. María não responde. Engole as palavras com a mesma calma com que engole o medo. Porque o medo, ah sim, como ela conhece: o da polícia que ronda, o do cliente violento, o do vírus invisível que muda destinos. 

Mas também conhece a força, aquela que vem quando o sol nasce e ela ainda está viva, com mais um dia pago, mais um prato garantido para a mãe e para a filha, residentes em Boane. 

São poucas as pessoas que sabem, mas María escreve. Num caderno velho, escondido dentro de uma mala rasgada, ela anota tudo: os cheiros, as vozes, os nomes falsos e os sonhos verdadeiros. Às vezes escreve versos sem sentido, outras vezes escreve orações que nem Deus deve ler. Mas escreve. 

E nesse caderno ela é livre, mais livre do que nas ruas, mais viva do que nas madrugadas. Porque para ela, liberdade não é luxo. Liberdade é poder escolher. Escolher o próprio caminho, o próprio tempo, o próprio corpo. 

Um dia, ela quer abrir uma barraca, vender galinha, arroz, e cerveja gelada. Quer ver a filha estudar, usar uniforme, rir sem pressa. Talvez até queira estudar de novo, quem sabe? Ela sonha, mesmo quando dizem que não pode. 

Às vezes, quando o cansaço pesa, María fecha os olhos e escuta uma música que toca lá longe, Lizha James cantando. A melodia chega misturada com o barulho das motas e das conversas. Ela sorri, e repete baixinho a frase que inventou para si mesma: 

— A vida empurra, mas eu empurro de volta. 

O dia amanhece devagar sobre o Km15, da Machava. As meninas desaparecem como fantasmas cansados. Os carros voltam, os vendedores gritam, o bairro acorda fingindo que não viu nada. Mas María de Jesus sabe que a noite guarda tudo, os segredos, os medos e também os pequenos milagres. 

E quando o primeiro raio de sol toca a esquina do Km15, ela suspira. Mais uma vez, sobreviveu. E isso, para quem vive da noite, já é uma forma de milagre. 

Escrito por: Melo Munguambe 

Foto: Internet

Artigo por

Elisa Chauque

Dezembro 8, 2025

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